sexta-feira, 29 de outubro de 2010

"Amor é fogo que arde sem se ver": COMENTÁRIO E INTERPRETAÇÃO LITERÁRIA

COMENTÁRIO E INTERPRETAÇÃO LITERÁRIA

Num texto literário há essencialmente um aspecto que é tradução de sentido e outro que é tradução de seu conteúdo humano, da mensagem através da qual um escritor se exprime, exprimindo uma visão do mundo e do homem.


O estudo do texto importa em considerá-lo da maneira mais íntegra possível, como comunicação. Mas ao mesmo tempo, e sobretudo, como expressão. O que o artista tem a comunicar, ele o faz na medida em que se exprime. A expressão é o aspecto fundamental da arte e portanto da literatura.


O comentário é uma espécie de tradução, feita previamente à interpretação, inseparável dela essencialmente, mas teoricamente podendo consistir numa operação separada. (...)


O comentário é tanto mais necessário quanto mais se afaste a poesia de nós, no tempo e na estrutura semântica. Um poema medieval necessita um trabalho prévio de elucidação filológica, que pode ser dispensado na poesia atual. Mas mesmo nesta há uma etapa inicial de “ tradução “ gramatical, biográfica, estética etc, que facilita o trabalho final e decisivo da interpretação.


O que é interpretação, alvo superior da exegese literária?


“Como já indicou expressivamente Emil Satiger, interpretar significa reproduzir e determinar como penetração compreensiva e linguagem adequada à matéria, a estrutura íntima, as normas estruturais peculiares, segundo as quais uma obra literária se processa, se divide e se constitui de novo como uma unidade. “ (STAIGER, A arte da interpretação, p.16).


(...)


Dificuldade: “um poema não se revela por si mesmo, nem para os que falam a mesma língua. É espantoso o quanto o leitor desprevenido (ou ingênuo) lê mal e não percebe.” (p.17).


Daí a necessidade de ensinar a aprender a interpretação sistemática.


Requisitos:


1. Não se prender exclusivamente a forma nem ao conteúdo (“formalismo” e “materialismo”); não utilizar padrões alheios ao poema. (p.17)


2. Não falar de si mesmo, mas da obra, isto é, não emprestar a ela os sentimentos e idéias pessoais que brotam por sua sugestão; mas procurar extrair os que estão contidos nela. (p.18)


Regras: “(...) aprender a ler, saber ouvir, prestar atenção a todas as particularidades” (p.17)


Análise: A análise comporta praticamente um aspecto de comentário puro e simples, que é o levantamento de dados exteriores à emoção poética, sobretudo dados históricos e filológicos. E comporta um aspecto já mais próximo à interpretação, que é a análise propriamente dita, o levantamento analítico de elementos internos do poema, sobretudo os ligados à sua construção fônica e semântica, e que tem como resultado uma decomposição do poema em elementos, chegando ao pormenor das últimas minúcias. A interpretação parte desta etapa, começa nela, mas se distingue por ser eminentemente integradora, visando interpretação, ao comentário do comentário, (fase inicial da análise) não dispensam a manifestação do gosto, a penetração simpática no poema. Comenta-se qualquer poema; só se interpretam os poemas que nos dizem algo. A análise está no meio do caminho, podendo ser, como vimos, mais análise-cementário ou mais análise-interpretação.


Análise e interpretação representam os dois momentos fundamentais do estudo textual, isto é, os que poderiam chamar respectivamente o “momento da parte” e o “momento do todo”, completando o círculo hermenêutico, ou interpretativo, que consiste em entender o todo pela parte e a parte pelo todo, a síntese pela análise e a análise pela síntese.


Abaixo, através de um breve exercício, percebemos como o comentário e a interpretação se completam e como cada um deles pode ser melhor compreendido por um caso concreto. Isto é, com o SONETO, de Camões, numerado 74 na edição Hernani Cidade:


Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e no se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;
É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É Ter com quem nos mata lealdade.


Mas como causar pode seu favor;
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?


COMENTÁRIO


Trata-se de um soneto. Significativo: adoção de um instrumento expressivo italiano (ou fixado e explorado pelos italianos), apto pela sua estrutura a exprimir uma dialética; isto é, no caso, uma forma ordenada e progressiva de argumentação. Há certa analogia entre a marcha do soneto e a de certo tipo de raciocínio lógico em voga ainda ao tempo de Camões: o silogismo. Em geral, contém uma preposição ou uma série de proposições (ou similar) e uma conclusão (ou algo que se pode a ela assimilar).


Este soneto obedece ao modelo clássico. É composto em decassílabo e obedece ao esquema de rimas ABBA, ABBA, CDC, DCD. Isto permite a divisão do tema e a construção de uma rica unidade sonora, na qual a familiaridade dos sons e a passagem dum sistema de rimas a outro ajuda ao mesmo tempo o envolvimento da sensibilidade e a clareza da exposição poética (proposição, conclusões).


O decassílabo, como aqui aparece, é de invenção italiana, embora exista com outros ritmos na poesia de outras línguas. Verso capaz de conter uma emissão sonora prolongada, e bastante variada para se ajustar ao conteúdo.


Este soneto apresenta uma particularidade: a proposição é feita por uma justaposição de conceitos nos dois primeiros quartetos, estendendo-se ao primeiro terceto. Só no último tem lugar a conclusão (que é uma conseqüência do exposto), que de ordinário principia no anterior.


Quanto à estrutura rítmica, notar que na parte propositiva (11 versos), todos os versos têm censura da 6ª sílaba, permitindo um destaque de membros, o primeiro dos quais exprime a primeira parte de uma antítese, exprimindo o segundo a Segunda parte. Vemos aqui a função lógica ou psicológica da métrica, ao ajustar-se à marcha intelectual e afetiva do poema.


Note-se ainda que o poema recorre discretamente à aliteração, isto é, `a freqüência num ou mais versos das mesmas consoantes, formando uma determinada constante sonora, ou antes, um efeito sonoro particular: r no primeiro verso; t no terceiro e sétimo; d no quarto; v no décimo etc.


Quanto a outras circunstâncias exteriores à interpretação, como a data de composição, situação da vida do poeta etc., não há elementos no caso, apenas um pormenor erudito de variantes. Na edição de 1598: o verso 1: “Amor é um fogo...”; verso 6: “É um andar solitário...”; e o verso 8: “è um cuidar...”.


INTERPRETAÇÃO


1ª PARTE: ASPECTO EXPRESSIVO FORMAL


Evidentemente se trata de um poema construído em torno de antítese, organizadas longitudinalmente em forma simétrica, por efeito de censura significativa, dando nítida impressão de estrutura bilateral regular, ordenada em torno de uma tensão dialética. São duas séries de membros que se opõem, prolongando durante onze versos um movimento de entrechoque.


Esta forma estrutural geral é movimentada por uma progressão constante de argumento poético, manifestada:
1. Pelo efeito de acúmulo das imagens, que acabam criando uma atmosfera de antítese;


2. Pela abstração progressiva das categorias gramaticais básicas que no caso vocábulos-chaves do ponto de vista poético. Assim é que temos sucessivamente uma área de substantivos, uma área de verbos substantivados e uma área de verbos.


• Substantivos: 1ª estrofe: fogo, ferida, contentamento e dor.
• Verbos substantivados: 2ª estrofe: um querer, um andar (solitário pode ser substantivo ou adjetivo, aliás; dupla leitura possível). Transição no terceiro verso que prepara para a passagem para a área seguinte verbal (/um/ nunca contentar-se).


• Verbos: 3ª estrofe, e já fim da Segunda: querer, estar, servir, Ter.


Trata de um nítido processo de abstração, que revela a passagem do estado passivo do sujeito poético à sua ação intensificando a sua força emocional.


Ainda sob este aspecto, note-se na área dos substantivos a evolução da causa material –fogo- para a conseqüência imediata e apenas metaforicamente imaterial –ferida- e dela a conseqüência imaterial mediata –contentamento e dor, que são estados de sensibilidade.


Na última estrofe, a cesura não divide o verso, há transposição (“enjambement”), e todo terceto se apresenta como unidade expressiva coesa e ininterrupta, pela presença de uma conseqüência lógico-poética, sob a forma de interrogação. Esta interrogação exprime a perplexidade do poeta e permite transitar à nossa segunda parte.






2ª PARTE: ASPECTO EXPRESSIVO EXISTENCIAL


Este soneto exprime, sob aparente nitidez lógica, uma densa e dramática tensão existencial; é o encerramento de uma profunda experiência humana, baseada na perplexidade ante o caráter contraditório (bilateral, para usar a expressão aplicada à forma estrutural só soneto), da vida humana. A vida é contraditória, e como os poetas não cansam de lembrar, amor e ódio, prazer e dor, alegria e tristeza, andam juntos. Sabemos hoje pela psicologia moderna que isto não constitui, para a ciência, motivo de perplexidade, mas a própria realidade dos sentimentos de toda a personalidade. A arte percebeu antes da ciência.


O soneto de Camões há uma rebeldia apenas retórica, sob a perplexidade do último terceto. Mas no corpo dialético do poema reponta uma aceitação das duas metades da vida, pelo conhecimento do seu caráter inevitável. A profunda experiência de um homem que viveu guerras, prisão, vícios, gozos do espírito, leva-o a esta análise que reconhece a divisão na unidade. E a própria conclusão perplexa do fim é o reconhecimento de que a unidade se sobrepõe afinal à divisão do ser no plano da experiência humana total. O amor é tudo o que vimos, e ele é aspiração de plenitude graças à qual o nosso ser organiza e se sente existir. Grande mistério sugere o poeta – que sendo tão aparentemente oposto à unidade do ser, ele seja um unificador dos seres (na medida em que é amizade).


A simetria antitética perfeitamente regular exprime a presença da vida, não as destruindo, mas integrando-as.



NOTA: Seria possível representar graficamente o soneto de Camões, levando em conta a estrutura antitética das três primeiras estrofes, contadas verticalmente pela cesura no 6o. verso, e o ritmo unificador da estrofe final:


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CANDIDO, Antônio. O estudo analítico do poema. São Paulo: FFLCH/USP, 1993. P.17-23. (Com alterações mínimas.).
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¹ Graduando em letras pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) – Jequié. É poeta e palestrante em cultos protestantes. É também professor de Espanhol nos colégios Amadeus e Super Passo e professor de Português e Literatura no Colégio Municipal Adolfo Ribeiro.

Um comentário:

Anônimo disse...

Perfeito! Gostei da publicação!!